Ir. Julia: ... eu tinha acabado de ler as nossas Constituições, justamente aquele trecho...

 

  O melhor lugar do mundo é onde Deus me quer". São José Freinademetz

  Ir. Julia: "... eu tinha acabado de ler as nossas Constituições, justamente
  aquele trecho onde fala de deixar os costumes, a terra, enfim..."

 

 

Sou natural do Piauí, primeira filha de seis. Morava na roça e participava da vida religiosa da comunidade. Chamava-me a atenção o mandato d e Jesus: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho" (Mc.16,15). Só em 79 chegou um padre na região, que visitou todas as localidades e me convidou para, juntamente com outras, fazer cursos de dirigente de comunidade, o que incluía diversas tarefas, como dirigir o culto, a catequese, os cursos para pais e padrinhos e outros mais que houvesse. Mais, me chamou para morar na cidade onde estava a sede da paróquia, para ajudá-lo nas comunidades. Fui uma das primeiras a integrar o grupo.

Em agosto, chegaram as Irmãs daqui de São Paulo, entre elas Irmã Ivonete, para realizar uma missão de férias. Eu já estava engajada, saía cedinho para as comunidades e, quando chegaram, continuei o trabalho com elas. Já participava de encontros vocacionais. Regina Coeli perguntou-me se eu queria ser Irmã. Chamava-me a atenção o modo como as Irmãs atendiam as pessoas, aquela alegria. Senti uma coisa forte. Aceitei o convite, vim logo com elas para São Paulo. Era o ano de 1980. 
Na comunidade vocacional, onde fiquei por 3 anos, éramos em 17. Pela manhã continuei os estudados e à tarde, durante dois anos, trabalhei como funcionária. Trabalhava nos serviços gerais com Irmã Albina, (Leônidas), que foi uma verdadeira formadora para mim, pela sua disposição e companheirismo. No noviciado fiz estágio na comunidade Madre Maria, em Belo Horizonte. Foi um tempo muito valiosos para mim, pelo testemunho da comunidade do Hospital São Lucas. Havia muito interesse umas pelas outras, acolhiam com carinho. Ainda como estágio estive em Rubim, por dois meses, onde também me senti muito bem acolhida. 

Depois da primeira profissão, em 87, ainda fiquei no Convento, trabalhando na cozinha com Irmã Ambrosiela. Já estava no Magistério e trabalhava na pastoral do bairro do Embura. Lá, visitava as pessoas, fazia celebrações, dava catequese, preparava para o crisma. Mesmo mais tarde, morando em Vila Remo, ainda ia ao Embura nos finais de semana, ia às sextas-feiras e voltava aos domingos. Depois fui para São Luis/MA, onde estive envolvida na alfabetização de adultos, nos trabalhos das comunidades, com jovens especialmente. De São Luis voltei ao Convento. Como juniorista tinha que passar por mais uma comunidade. Fiz então um curso de Auxiliar de Enfermagem. De manhã estudava e trabalhava à tarde. 
Fiz os votos perpétuos em 94 e, em seguida, fui para Belo Horizonte, onde trabalhei no SEMPER, um hospital particular e na Santa Casa. Nessa época, fui indicada para fazer parte do grupo que ia começar uma missão em Mata Verde/MG. Depois de três anos, fui convidada a fazer companhia à Irmã Matilde, no Kindege, em Angola. Fiz o curso no Centro Cultural Missionário, em Brasília. Éramos uns 26 no curso, a maioria destinada à África, entretanto, eu era a única que ia para Angola. O grupo tinha pena de mim, porque ia para um país em guerra. Por que ia para lá? Respondia que não ia para morrer na guerra, se os que estão lá não morrem, por que eu iria morrer? Vou lá acabar com a guerra, se puder...

Chamou-me a atenção que naquele dia em que a Irmã Helena me ligou para me propor à missão em Angola, 27 de agosto de 99, eu tinha acabado de ler as nossas Constituições, justamente aquele trecho onde fala de deixar os costumes, a terra, enfim. Então, a partir daquele dia meu, coração ficou tranqüilo. Em Mata Verde, como havia acabado meu tempo na coordenação diocesana de catequese, houve mudança, parece até que a Providência estava me preparando para outra missão. Disseram que a burocracia ia demorar a liberar o visto, mas não, em janeiro de 2000 eu já estava pronta para viajar. 

Fui preparada para ir a um lugar paupérrimo, então, ao descermos no aeroporto de Luanda vi tanto movimento, até me chocou, havia tantos carros e aviões, me perguntava, que pobreza é essa? Fui a última a sair do avião. No aeroporto, estavam quase todas as Irmãs me esperando. Fiquei na Casa Regional até arrumar a papelada, era importante ter a documentação em dia, sobretudo porque o lugar em que eu ia ficar era uma área de combate. Enquanto isso, aproveitei para conhecer as comunidades e os trabalhos de nossas Irmãs em Luanda. Também lá fiz o curso para missionarias durante maio de 2000. Em junho tive um treinamento de um mês, sobre a doença do sono, Tripanossomíase Humana, endêmica na região. 

Finalmente, dia 19 de julho fui para Kindege. Não havia estrada, só picada na mata. Chegamos em minha nova morada no mesmo dia em que chegou um caminhão do projeto, que não parou para se apresentar ao comando. Os homens da tropa cercaram nosso carro, apresentamo-nos e nos deixaram passar. Para mim foram essas as coisas que me impressionaram na chegada. 

Na casa das Irmãs, achei tudo muito parecido com o lugar onde nasci. Não havia cozinha, cozinhavam sobre três pedras, no quintal. A primeira coisa que me pediram foi para ajudar a arrumar os poucos medicamentos que ainda restavam. Estávamos sob ameaça constante de ataque. A vida lá em Kindege era sempre sob tensão, para escapar ou morrer. 

Nos mais de três anos que lá estive, íamos às aldeias fazer trabalho de saúde preventiva, fazíamos campanhas, também ajudava no hospital. Eu trabalhava mais com as mulheres. Naquele ano havia um projeto para canalizar água para a aldeia. Durante uma semana fizemos uma campanha, que consistia em enterrar tubos a meio metro de profundidade, numa distância de 1,5km. Irmão Hugo organizava os homens e eu ajudava as mulheres, que participaram em peso.

Irmão Hugo, um Verbita argentino, morava conosco. Morar com esse Irmão foi uma experiência marcante para mim. No princípio, eu estava meio reservada, meio armada, pensava que morar com homem significa para nós, mulheres, ter que servi-lo. A experiência foi diferente, aprendi o que é sermos irmãos e irmãs. Hugo participava de tudo, tanto nas equipes de liturgia até na preparação das refeições, estava sempre disposto. Como conhecia a língua local, nos ajudava muito na comunicação com o povo. Mais tarde ele foi transferido, mas mesmo de Luanda continuou apoiando a missão do Kindege. 

A primeira ameaça de ataque me marcou muito. Estava sozinha com Irmã Soledade, uma chilena, todo o povo tinha fugido, foi se esconder na mata, só nós ficamos em casa a noite toda, esperando a morte chegar. Pela manhã, duas mulheres vizinhas voltaram para buscar coisas que não puderam carregar na véspera. Subimos na pedra que existe ao lado da casa, para observar a mata. Víamos apenas fumaça subindo da mata, enquanto as duas mulheres, uma delas grávida, com banheira (trouxa) na cabeça e criança nas costas, sumindo em direção ao esconderijo. Era tempo de guerra, nunca ficávamos ou saíamos sozinhas. Eu não tinha tanto medo da morte, mas de sofrer violência, se chegassem bêbados o pior poderia acontecer. Quanto à morte, é Deus quem sabe, se Ele me mandou para cá, estava pronta.

Mesmo durante a guerra, não parávamos o trabalho, o hospital estava sempre cheio de gente. Trabalhávamos e, ao mesmo tempo, estávamos preparadas para fugir. Numa ocasião chegou uma parturiente ao hospital e ao mesmo tempo, havia ameaça forte de ataque. O povo todo fugiu com exceção do homem mais velho do local e nós, duas enfermeiras e Irmão Hugo. Não havia como correr com a mulher para a mata. A família entregou a filha a nós e todos sumiram para a mata. Levamo-la para nossa casa onde à tardinha nasceu um menino, Hugo das Graças (ver foto). A vida não parava, salvamos aquela criança. Era 29 de dezembro, ainda tempo de natal, festejamos o fato com música e alegria. O povo da mata só retornou dia 2 de janeiro. Nesse tempo todo o enfermeiro ia cuidar dos doentes lá na mata. 
As principais doenças lá são verminoses, malária e tripanossomia. Numa ocasião, antes mesmo do médico chegar, trouxeram a mulher de um comandante com malária cerebral. Tratamos dela, que saiu andando. O hospital de Kindege era pequeno, tinha apenas 40 leitos. A mortalidade infantil é grande em Angola, há sempre gente caminhando de cá para lá, nos óbitos (velório), para levar as condolências.
Coisas alegres a gente tinha, quando, por exemplo acabava uma experiência difícil fazíamos festa. Os guerrilheiros respeitavam muito as missionárias, a gente tinha que saber lidar com eles para poder salvar as pessoas. Fiquei em Angola por 3 anos e 7 meses. Quando Matilde viajou, fiquei dando continuidade à construção da casa do médico, que só chegou do Congo em dezembro. Ajudamos a construir também a casa dos enfermeiros, na verdade, era só reconstruir as casas destruídas.
Da missão de Angola trouxe a valiosa experiência da internacionalidade. Entre as Irmãs, éramos de seis nacionalidades distintas: brasileira, argentina, chilena, polonesa, indonésia, filipina, além de Trini, uma leiga mexicana. Apesar das diferenças, tínhamos um ponto em comum, o ser missionária, que nos dava unidade, nos sustentava. 
Como mensagem para Kindege, continuem organizando-se, principalmente no que se refere à educação e à saúde preventiva, continuem a lutar pela vida. Depois de estudar um pouco mais, volto, se me chamarem.


foto: Hugo das Graças e sua família

 

 

Irmã Júlia Alves de Araújo, SSpS - pertence a Província Brasil Norte
outubro/2004

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