Ir. Nelly concede entrevista para o site www.setor3.com.br

 

"O melhor lugar do mundo é onde Deus me quer". São José Freinademetz 

  Ir. Nelly concede entrevista para o site www.setor3.com.br

Educadora deixa a Europa para lutar pelos Direitos Humanos na zona sul de São Paulo.

 

Natural de Luxemburgo, mas de nacionalidade holandesa, Petronella Maria Boonen, mais conhecida com Nelly, veio para o Brasil aos 21 anos, com a mochila nas costas. Ela era educadora e estava muito incomodada de viver em uma das partes mais ricas do mundo. Ficou seis meses no Brasil e voltou para Luxemburgo.
Dois anos depois, mudou-se definitivamente para o Brasil. Desde então, trabalha na luta pela superação da violência na cidade de São Paulo. Atualmente, é educadora do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP).
Seus olhos claros e vivazes brilham de indignação quando observa a desigualdade social com a qual nosso país convive.

Setor 3 - De onde vem esse seu descontentamento em viver numa das partes mais ricas do mundo?

Nelly - Eu acho que tem a ver com a minha fé. Se somos todos iguais, não podia me contentar com isso. Sou missionária das Servas do Espírito Santo e sempre entendi o "ser cristão" como um impulso para lutar em uma ação político-social. Já na Europa, lutei contra a corrida armamentista, contra as usinas nucleares... A gente fazia um montão de coisas quando jovem. 
Setor 3 - Como foi sua adaptação no Brasil?
Nelly - Depois de alguns anos aqui, percebi que não estava entendendo nada do Brasil. Aí, fui estudar Ciências Sociais para ver se conseguia compreender um pouquinho dessa diferença que existe entre a Europa do Norte e as terras latinas. Fiz Ciências Sociais na USP, por causa de uma necessidade em dialogar com aquele outro tão diferente de mim.

Setor 3 – Como uma pessoa que se interessa tanto por um país a ponto de vir morar nele não consegue compreendê-lo?

Nelly - Bom, acho que até hoje não consigo entender muita coisa. Esse é um dos grandes mistérios do ser humano. A questão cultural é muito importante. Eu sempre me obrigo a dialogar com o diferente. Aparentemente, somos iguais, porque o Brasil é muito ocidentalizado: república, democracia, grande parte da população é descendente de europeus. ... Mas depois de dois ou três anos que você está aqui, percebe que é igual, mas nem tanto. Aqui tem toda a influência afro...

Setor 3 - E como você ingressou no CDHEP?

Nelly - Sempre nessa busca de uma justiça social, trabalhei três anos no Grupo de Estudos da Violência da USP como pesquisadora. No Campo Limpo, já tinha trabalhado num projeto educacional. 
Um dia eu estava indo para a USP. Era meio-dia e encontrei um corpo estendido na rua. Um assassinato. Foi uma experiência chocante para mim. As crianças brincando ali, a polícia científica tinha acabado de chegar... Eu fiquei horrorizada... Por mais que já tivesse trabalhado num movimento de paz, na Europa, essa foi uma experiência muito marcante. Como corpos podiam ficar estendidos oito, dez, quinze horas, aqui nas periferias? A morte é um momento sacro, essa passagem de uma vida para outra. Banaliza-se isso de uma forma que até hoje não consigo aceitar.

Setor 3 - De que forma então você resolveu tentar mudar isso?

Nelly - Entre 93 e 94, comecei a trabalhar como voluntária no CDHEP, porque aqui já se discutia a questão da violência. Apenas há um ano, trabalho como educadora. Mas nesse meio tempo, já dei aula, fiz um mestrado em Educação sobre a temática da violência na região. Então, é uma questão que me mobiliza inteiramente.

Setor 3 - Que tipo de ação o CDHEP realiza contra a violência?

Nelly - A gente prefere falar em superação da violência, e não combate à violência. Porque "ir contra" já gera violência. Toda a luta em torno dos direitos humanos é uma luta para a superação das mais diversas formas de violência. Uma de nossas linhas de atuação é a formação. A Escola de Lideranças oferece diversos cursos. Normalmente, fazemos um plano de três anos, mas estamos sempre de olho no que a redondeza pede. O CDHEP tenta se adaptar às necessidades da região.

Setor 3 - Quais as conquistas do CDHEP nesses vinte anos de atuação?

Nelly - Uma conquista grande é servir como interlocutor da região. Tanto o Fórum da Vida quanto o CDHEP são conhecidos como interlocutores da região. Mas o crescimento populacional é tão grande, que a gente não dá conta. O Estado não dá conta, quanto mais o CDHEP, que tem poucos recursos. A gente tem iniciativas que deram certo na superação da violência, mas não consegue mostrar com números. Na verdade, a violência aqui nem diminuiu. Então, imagine se não estivéssemos fazendo esse trabalho! Eu acho que a questão da educação popular é sempre um acréscimo, a gente agrega valor às pessoas daqui.

Setor 3 - Qual a temática dos cursos?

Nelly - A minha área é formação em direitos humanos. Trabalho a questão da justiça nas escolas e no treinamento para integrar comunidade e escola. Depois que fiz meu mestrado, achei que conhecia a periferia. Mas sempre me surpreendo. Os altos índices de violência das regiões periféricas cortam a relação dos moradores com o bairro. O medo é tão grande que o pessoal se volta para dentro de casa. Então como você vai criar uma vida social? Você tem que puxar as pessoas para fora de casa, tem que fazer com que as pessoas participem das ações comunitárias.
Para educadora do CDHEP Base Comunitária funciona como "cartão-postal"

Setor 3 - A zona sul de São Paulo tem os piores índice de homicídios da cidade. Vocês têm um projeto específico para isso, vocês já têm alguns resultados?

Nelly - Resultado fica difícil. É incrível. O Fórum de Defesa da Vida se reúne desde o final de 96 e vem a público denunciar essa situação. Quanto mais longe do centro, menos presença do Estado. É mais ou menos assim, onde há mais delito contra o patrimônio, há mais polícia. E onde há mais delito contra a vida, há menos polícia. 
Quanto ao projeto, tentamos negociar com a Secretaria de Saúde, mas os jornais de 7 de setembro dizem que o orçamento do Hospital do Campo Limpo foi cortado. Com quase 500 mil habitantes, essa região é uma cidade do interior, de médio porte, sem hospital. Essa é uma reivindicação. 
Outra reivindicação é que a Polícia Militar, há alguns anos, instalou duas Bases Comunitárias no Jardim Ângela. E essas bases estão sendo o 'cartão-postal' da polícia. Aí vem o pessoal do Japão, do Canadá, dos Estados Unidos parabenizar a polícia. 
O Fórum em Defesa da Vida fez uma pesquisa: a 1 km da Base Comunitária, todo mundo acha ótimo. Mas se você vai a 3 ou 4 km dalí, ninguém sabe da Base. Conclusão, ela atende um raio muito pequeno. Nós queremos pelo menos 10 Bases Comunitárias na região.

Setor 3 - Mas isso é um problema dos grandes índices de violência ou das grandes cidades? 

Nelly – Nos Jardins, você não escuta a "comunidade dos Jardins". Você escuta a "comunidade do Capão Redondo"... Parece que quanto mais você vai para a periferia, quanto mais carente, mais você necessita uns dos outros. Nas décadas de 70 e 80, a região tinha uma mobilização de movimentos, de comunidades muito grande. No início da década de 90, isso começa a diminuir. Ao mesmo tempo, a violência aumenta. Eu não digo que um é conseqüência direta da outro. Agora, a recessão, o desemprego aumentaram muitíssimo. A fome está aumentando, os roubos estão aumentando. Então, realmente o perigo vem dos lugares mais impensáveis, inclusive do seu próprio vizinho. E aí, as pessoas se isolam da rua, da vizinhança, de uma vida comunitária que, eventualmente, poderia surgir. A idéia, então, é começar a criar, a partir de escolas, núcleos de conscientização para a vida. Não só dentro da escola, mas ao redor da escola. Começar a ativar a vida comunitária.

Setor 3 - E qual é justamente a demanda da região?

Nelly - Nesse momento, acesso à justiça. São Paulo é um dos poucos Estados no Brasil que não tem Defensoria Pública, como a constituição garante. São Paulo ainda não garante esse direito a nossa população. Por mais que a justiça seja lenta, o acesso à justiça é muito importante. Realizamos o curso de orientador jurídico popular, por exemplo. Este ano, o CDHEP já preparou os candidatos ao Conselho Tutelar do Município, que cuidam da defesa dos direitos da criança. Algumas pessoas, desistiram ao longo do curso. Mas outros foram eleitos e pensaram: que legal que o CDHEP se preocupou em dar essa ferramenta para a gente.

Setor 3 - Mas essa é uma demanda específica do Campo Limpo ou da cidade toda?

Nelly - Seria da cidade, mas a gente não dá conta.

Setor 3 - Existe alguma demanda que seja específica desta região?

Nelly - Se você olha o mapa de exclusão, com o mapeamento dos 96 distritos da cidade, você vê que quanto mais a gente se afasta do centro, mais excluído está. A situação aqui é muito parecida com a da zona leste. Os problemas são muito semelhantes. Nós ainda temos alguns complicadores a mais... Por exemplo, a zona sul é a área de manancial. Precisamos preservá-la, mas como vamos tirar uma população de centenas de milhares de pessoas dos mananciais, elas não têm para onde ir? Aí você tem a luta da necessidade da água e da necessidade da moradia. Como fazer? Outra coisa, a questão do transporte. Dizem que a zona sul é a região mais precárias em transporte. Agora temos o metrô, só que pára em Santo Amaro, não tem conexão com o centro. Então é outro desastre, porque a zona sul não tem outra comunicação com a cidade que não seja ônibus, e isso torna as viagens extremamente penosas.
"Eu não sabia que a fome estava aqui na esquina"

Setor 3 - De que forma essa formação em direitos humanos propicia o desenvolvimento de um conceito de comunidade um pouco mais efetivo?

Nelly - Eu sempre lembro da professora Maria Vitória Benevides, que falava que nós temos que trabalhar os valores republicanos. A república que é o 'bem comum' e depende da contribuição de todo mundo. Por mais que a gente se ache autônomo, somos dependentes. Igualdade, nós não temos. Liberdade, também não - você tem a liberdade de pegar o ônibus de manhã e ir trabalhar, mas você não tem liberdade. E solidariedade... Você não tem nada aqui! Nem solidariedade existe nesse momento. Nós temos o mesmo medo da classe média de perder o que temos, só que nós só temos a vida para perder. 
Sábado, estava num conjunto habitacional aqui perto e eu perguntei para uma liderança: se você recebesse muito dinheiro, em que você investiria? 'Eu compraria cestas básicas porque o pessoal aqui tem fome', ela disse. Ela é uma liderança popular, só que eu não imaginei que a primeira necessidade fosse matar a fome. Eu não sabia que a fome estava aqui na esquina. Não estamos lá no fundão do Capão Redondo. 
Acho que uma tarefa hoje dos movimentos sociais da periferia é dialogar com o centro. Ficarmos isolados na aqui, dialogando com a exclusão, não é suficiente. E nisso eu vejo a importância do CDHEP, ele está presente em comissões, na preparação da conferência dos direitos das mulheres, dos direitos humanos. Dialogamos com a cidade. Eu não acredito que o pessoal do Morumbi, que está mais incluído, não tenha interesse em contribuir para que a região sul esteja um pouco mais incluída. Porque isso não faz bem nem para quem é incluído.

Setor 3 - De que forma você acha que ter se dedicado todos esses anos ao social pode ter te enriquecido como pessoa?

Nelly - Boa pergunta... Eu saí de Luxemburgo porque não dei mais conta de morar num dos lugares mais ricos do mundo. Eu sou filha de agricultores, tem o trabalho manual... mas a questão da solidariedade foi um raio que entrou na minha consciência e nunca mais me deixou. Por isso digo que foi uma experiência religiosa; porque passou a reorganizar minha vida. É uma perseverança além de mim, não é racional. 
Até hoje não consigo me contentar que a Vila Mariana é o lugar de maior inclusão e a Administração Regional tem três vezes mais dinheiro que a de Campo Limpo. Isso tem que ser dito. E não basta só dizer, tem que mudar. Precisamos criar conexões com toda a sociedade. Eu acho importante que a gente mostre, que crie contatos, que possamos nos indignar, nos encontrar com outras pessoas que estão tão indignadas quanto a gente, que sejam empresários, sei lá, todos que queiram contribuir. Tem gente que fala: 'ah, a gente não tem canais...' Esse pecado eu não quero ter! Porque acho que hoje deve ser uma preocupação de todo mundo. Não pode ser uma preocupação só de quem está excluído. Acho que a situação está tão séria, que quem tiver um pouco de consciência vai contribuir. E nós temos que manifestar que precisamos dessas contribuições.

Fonte: https://www.setor3.com.br
foto: Willians Valente
Ir. Petronella Boonen, SSpS - pertence a Provincia Brasil Norte

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