1915

1915

Ansiava-se por novos ventos que arejassem o tão pesado clima escuro, com cheiro de chumbo, do pós AI-5. Estava numa reunião em que se falava da Teologia da Libertação, não me esqueço de uma participante que estivera em Lins vinda do Nordeste. Fazia um intenso calor, agravado por alta umidade no ar. Debatíamos em grupos quando, de repente, uma forte chuva desabou com estrondo: quase não podíamos nos ouvir entre nós. Ela se levantou e correu, escada abaixo, para fora. No meio fio, a água corria como um riacho cantante. Abaixou-se, com as duas mãos em concha, colheu a água e bebeu três vezes. Lavou o rosto e molhou os cabelos. De volta para a sala, falou do nordeste e da seca que durara três anos.

Lembrei-me de O quinze escrito por Raquel de Queiroz. A seca de 1915 fora tão intensa que a população emigrara para a capital em busca de água e comida. Imensos campos de concentração, mais conhecidos como currais do governo, foram construídos com medo que invadissem os mercados de alimentos. O de Alagadiço chegou a concentrar oito mil pessoas. Durante a seca de 1932, outros campos foram instalados, não só em Fortaleza (e Pirambu), como também em Crato, Quixadá, Quixeramobim, Cariús, Senador Pompeu,  Ipu, totalizando cerca de 73 mil flagelados.

Viajei por caminhos assolados pela seca, partindo da Bahia, atravessando o Vaza Barris a pé (o leito secara) em direção a Canudos e depois, seguindo para Tauá, Crateús, no Ceará, e arredores, até chegar a Fortaleza. Contemplei a mesma paisagem seca no sertão da Paraíba, de Pernambuco, Piauí ... 

Os novos ventos democráticos impulsionaram movimentos sociais que se articularam com forças que resistiram durante a noite de chumbo: pastorais sociais, grupos de universitários, núcleos de Educação Popular e outras organizações. Retornei ao nordeste no início do novo milênio e conheci a ASA (Articulação do Semiárido). Dela surgiram as cisternas populares que abrigam a água da chuva. Em todo nordeste, as cisternas floresceram construídas pela população, inclusive no interior do Piauí, na Serra da Capivara. A ASA acendeu a esperança de um feliz convívio com o semiárido.

O sonho da população, com a Articulação do Semiárido, resultou em exitosa tecnologia social, graças principalmente à Caritas: a primeira água das cisternas de placa para consumo das famílias, e, a segunda água, para pequenas hortas e criação de pequenos animais. O governo federal foi convencido de que essa tecnologia popular pode matar a sede e a fome de milhões de nordestinos. A meta sonhada foi alcançada: mais de um milhão de cisternas da qual sobrevivem cerca de cinco milhões de pessoas que, sem elas, estariam padecendo das agruras da falta de água para beber, cozinhar, produzir alimentos. Encantador modo de marcar o centenário da grande seca de 1915.

Quando a solidariedade substitui o egoísmo, em vez de campos de concentração, constroem-se cisternas para garantir o direito a uma convivência digna com o semiárido.

Iolanda Toshie Ide  

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